quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Sobre estar sozinho


Flávio Gikovate*

Não é apenas o avanço tecnológico que marcou o início deste milênio. As relações
afetivas também estão passando por profundas transformações e revolucionando
o conceito de amor.

O que se busca, hoje, é uma relação compatível com os tempos modernos, na qual
exista individualidade, respeito, alegria e prazer de estar junto, e não mais uma
relação de dependência, em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar.

A idéia de uma pessoa ser o remédio para nossa felicidade, que nasceu com o
romantismo, está fadada a desaparecer neste início de século. O amor romântico
parte da premissa de que somos uma fração e precisamos encontrar nossa outra
metade para nos sentirmos completos. Muitas vezes ocorre até um processo de
despersonalização que, historicamente, tem atingido mais a mulher. Ela abandona
suas características, para se amalgamar ao projeto masculino. A teoria da ligação
entre opostos também vem dessa raiz: o outro tem de saber fazer o que eu não sei
. Se sou manso, ele deve ser agressivo, e assim por diante. Uma ideia prática
de sobrevivência – e pouco romântica, por sinal.

A palavra de ordem deste século é parceria. Estamos trocando o amor de necessidade,
pelo amor de desejo. Eu gosto e desejo a companhia, mas não preciso, o que é muito
diferente.

Com o avanço tecnológico, que exige mais tempo individual, as pessoas estão perdendo
o pavor de ficar sozinhas, e aprendendo a conviver melhor consigo mesmas. Elas estão
começando a perceber que se sentem fração, mas são inteiras. O outro, com o qual se
estabelece um elo, também se sente uma fração. Não é príncipe ou salvador de coisa
nenhuma. É apenas um companheiro de viagem.

O homem é um animal que vai mudando o mundo, e depois tem de ir se reciclando, para
se adaptar ao mundo que fabricou. Estamos entrando na era da individualidade, o que não
tem nada a ver com egoísmo. O egoísta não tem energia própria; ele se alimenta da energia
que vem do outro, seja ela financeira ou moral. A nova forma de amor, ou mais amor,
tem nova feição e significado. Visa à aproximação de dois inteiros, e não a união
de duas metades. E ela só é possível para aqueles que conseguirem trabalhar sua individualidade.

Quanto mais o indivíduo for competente para viver sozinho, mais preparado estará para
uma boa relação afetiva. A solidão é boa, ficar sozinho não é vergonhoso. Ao contrário,
dá dignidade à pessoa. As boas relações afetivas são ótimas, são muito parecidas com
o ficar sozinho, ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem. Relações de dominação
e de concessões exageradas são coisas do século passado. Cada cérebro é único. Nosso modo
de pensar e agir não serve de referência para avaliar ninguém.

Muitas vezes, pensamos que o outro é nossa alma gêmea e, na verdade, o que fizemos foi
inventá-lo ao nosso gosto. Todas as pessoas deveriam ficar sozinhas de vez em quando,
para estabelecer um diálogo interno e descobrir sua força pessoal.

Na solidão, o indivíduo entende que a harmonia e a paz de espírito só podem ser encontradas
dentro dele mesmo, e não a partir do outro. Ao perceber isso, ele se torna menos crítico
e mais compreensivo quanto às diferenças, respeitando a maneira de ser de cada um.

O amor de duas pessoas inteiras é bem mais saudável. Nesse tipo de ligação, há o aconchego,
o prazer da companhia e o respeito pelo ser amado. Nem sempre é suficiente ser perdoado
por alguém: algumas vezes, você tem de aprender a perdoar a si mesmo…

* Flávio Gikovate é médico formado pela USP no ano de 1966. Desde 1967, trabalha
como psicoterapeuta, tendo atendido mais de 8000 pacientes. Dedica-se, principalmente,
às técnicas breves de psicoterapia.